Trabalho análogo a escravo, uso de forças militares e paramilitares, deslocamentos forçados, severos danos ambientais, profanação de locais sagrados de indígenas e povos tradicionais, privação de água e da terra, exploração de crianças e homicídios são apenas alguns dos exemplos de violações a direitos humanos perpetradas por empresas ao redor do mundo. Mineradoras, construtoras, farmacêuticas, petrolíferas e outras transnacionais têm sido alvo constante de denúncias, gerando apenas, quando muito, algum dano reputacional. Não por acaso.
Até o momento, no âmbito do direito internacional, apenas diretrizes orientadoras de conduta das empresas para com os direitos humanos, não vinculantes, dirigem-se a este problema. Esta lacuna legal vem sendo sentida há décadas e tentativas anteriores em avançar sobre a construção de normas vinculantes não prosperaram.
Uma iniciativa pioneira se deu com a Comissão da ONU sobre Empresas Transnacionais (TNCs) criada em 1973 para investigar o impacto das operações levadas a cabo por empresas transnacionais. Como resultado, o Código de Conduta da ONU sobre TNCs foi a primeira tentativa de se estabelecer diretrizes globais para companhias transnacionais. O processo, no entanto, foi alvo de intensa pressão por parte de Estados sede das empresas e por elas próprias. A proposta naufragou e o debate no âmbito da ONU se baseou na edição de regras “soft law”, pautado por princípios norteadores para empresas e responsabilidade social corporativa. Essas regras estão na contramão do clamor por justiça de comunidades, povos indígenas e organizações sociais em luta por reparação aos abusos cometidos por empresas em todo o globo.
A verdade é que a responsabilização das empresas por violações a direitos humanos é quase inexistente
A verdade é que a responsabilização das empresas por violações a direitos humanos é quase inexistente, muito em razão da insuficiência de um marco normativo que defina, com clareza, quais são as obrigações das empresas para com os direitos humanos e os mecanismos existentes para prevenir, reparar e punir as violações.
Este cenário tende a mudar. O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou em junho, durante a 26ª sessão, uma resolução, impulsionada pelo Equador e África do Sul, que determina a criação de um grupo de trabalho com mandato para desenhar uma proposta de normas vinculantes das atividades de empresas e corporações transnacionais. A proposta contou com a oposição dos Estados Unidos e União Europeia, mas contou com o apoio de todos os países BRICS, com exceção do Brasil, que preferiu se abster, mesmo havendo a obrigação constitucional de agir em prol dos direitos humanos no âmbito internacional.
Há um longo caminho a percorrer em busca de um marco legal que faça frente ao volume e dimensão das violações perpetradas por empresas, mas o primeiro e fundamental passo foi dado. Esta regulação suprirá uma lacuna inescusável no direito internacional dos direitos humanos, desde que seja capaz de reduzir assimetria de poder e informação entre as empresas e as vítimas e as barreiras impostas por arranjos societários internacionais que tornam quase impossível a identificação de um foro adequado para a resolução de conflitos. Além disso, pode ser uma plataforma única para debater responsabilidades outras, como as dos países sede e países receptores de empresas transnacionais, bem como para lançar luz e concretude para a assimetria existente entre o ordenamento jurídico de defesa de interesses empresariais – como as regras de comércio, de investimentos e os tratados de livre comércio – e as regras de defesa das populações afetadas por atividades empresariais.
Como responsabilizar uma transacional brasileira pelas violações cometidas em Angola? Como responsabilizar uma empresa americana que viola direitos humanos no Brasil e na Bolívia? Como promover a responsabilização dos incumbidos pela governança dessas empresas? Quais mecanismos serão criados para produção de informação e provas nesses processos? Quais as salvaguardas para aqueles que litigarem contra essas empresas? Essas são algumas das perguntas que o grupo de trabalho intergovernamental das Nações Unidas deverá procurar responder.
A obtenção de boas respostas a estas perguntas, no entanto, dependerá do engajamento e da seriedade dos Estados-parte na condução dos trabalhos. Esperamos que a busca implacável da diplomacia brasileira por um lugar ao sol na ONU gere uma postura séria a propositiva na construção de um marco jurídico internacional sólido e capaz de proteger os direitos humanos no mundo.
Eloísa Machado de Almeida é advogada, professora da Direito GV e membro do Coletivo de Advogados de Direitos Humanos – CADHu